A professora e a Maleta
(Capítulo do livro A Casa da Madrinha de Lygia Bojunga Nunes, escrito em 1978)
A professora era gorducha: a maleta também. A professora era jovem: a maleta era
velha, meio estragada, e de um lado tinha o desenho de um garoto e uma garota de
mão dada, vestindo igual, cabelo igual, risada igual.
A professora gostava de ver a classe contente. Mal entrava na sala e já ia contando
uma coisa engraçada. Depois abria a maleta e escolhia o pacote do dia. Tinha pacote
pequenininho, médio e grande, tinha pacote embrulhado no papel de seda, metido em
saquinho de plástico, tinha pacote de tudo quanto é cor; não era a toa que a maleta
ficava gorda daquele jeito. Só pela cor do pacote, as crianças já sabiam o que ia
acontecer. Pacote azul era dia de inventar brincadeira de juntar menino e menina; não
ficava mais valendo aquela história mofada de menino só brinca disso, menina só
brinca daquilo, meninos do lado de cá, meninas do lado de lá. Pacote cor-de-rosa era
dia de aprender a cozinhar. A professora remexia no pacote, entrava e saía da classe
e de repente, pronto! Montava um fogão com bujãozinho de gás e tudo. Era um tal de
experimentar receita que só vendo. (Um dia a diretora entrou na classe justo na hora
em que Alexandre estava ensinando um garoto a fazer uns bolinhos de trigo. Uma
fumaceira medonha na sala. Tudo quanto era criança em volta do fogão palpitando :
falta mais sal! Bota pimenta !bota um pouquinho de salsa. A diretora sabia que estava
na hora da aula de matemática. Que matemática era aquela que a professora estava
ensinando? Não gostou da invenção, mas saiu sem dizer nada).
Pacote vermelho era dia de viajar: saía retrato do mundo inteiro lá do fundo do pacote,
espalhavam tudo aquilo pela classe, enfileiravam as carteiras parta fingir de avião e de
trem, quando chegavam nos retratos um ia contando pro outro tudo que sabia do
lugar.
Tinha um pacote cor-de-burro-quando-foge que a Professora nunca chegou a abrir.
Todo dia ela botava o pacote em cima da mesa. Mas na hora de abrir ficava pensando
se abria ou não e, acabava guardando o pacote de novo.
Pacote verde era dia de aprender a pregar botão, botar fecho, fazer bainha na calça e
na saia. Se o verde era bem forte era dia de aprender a cortar unha e cabelo. Verde
bem clarinho era dia de consertar sapato. E tinha um verde que não era forte nem
claro, era um verde amarelado que as crianças adoravam: era dia da professora abrir
pacote de história. Cada história ótima.
E tinha um pacote branco que só servia pra Professora esconder e pra turma brincar
de achar. Quem achava ia pro quadro negro dar aula. No princípio ninguém procurava
direito: coisa mais chata dar aula! E aula do quê?
— Conta tua vida, ué, mostra o que você sabe fazer.
Com o tempo, a turma deu para procurar direito o pacote: achavam engraçada aquela
tal aula.
No dia em que Alexandre achou o pacote, resolveu contar para a turma como é que
ele vendia amendoim na praia.. No melhor da aula, um grupo de pais de alunos, que
estavam visitando a escola, entrou na sala. Quando a aula acabou um deles
perguntou à professora?
— A senhora está querendo ensinar o meu filho a vender amendoim?
A Professora explicou que Alexandre só estava contando para os colegas como era o
trabalho dele, para todos ficarem sabendo como é que ele vivia.
No outro dia saiu a fofoca: contaram para Alexandre que tinha um pessoal que não
estava gostando da maleta da Professora.
— Que pessoal?
Um disse que era a Diretora, outro disse que era uma outra professora, outro disse
que era o pai de um aluno, outro falou que era o faxineiro e foi um tal de disse que o
outro falou, que ninguém ficou sabendo direito.
Aí, uns dias depois, choveu muito. Chuva grossa. Encheu rua, o tráfego da cidade
parou, casa desmoronou, coisa à beça aconteceu. Quase ninguém foi à escola. Mas
Alexandre foi. Entrou na classe e viu tudo vazio, chovia demais para voltar para casa;
resolveu sentar e esperar. Lá pelas tantas, a Professora chegou. Mas chegou sem a
maleta. E com um jeito diferente, uma cara meio inchada, não contou coisa gozada,
não riu nem nada. Sentou e ficou olhando pro chão. Alexandre achou que ela nem
tinha visto ele:
— Oi.
Ela também disse oi, e continuou quieta. Depois de um tempo, Alexandre cansou de
tanto ninguém dizer nada e falou:
— A chuva molhou sua cara.
A Professora nem se mexeu. Ele perguntou:
— Foi a chuva?
Ela fez que sim com a cabeça. Alexandre resolveu esperar mais um pouco. Mas pelo
jeito, a Professora tinha esquecido de dar aula. Será que era porque ela não tinha
trazido a maleta? Arriscou:
— Cadê a maleta?
A Professora olhou para ele sem saber muito bem o que é que dizia. Ele insistiu.
— Hem? Cadê?
— Perdi.
Ele se apavorou:
— Com tudo que tinha lá dentro?!
— É.
— Os pacotes todos?
— É, é, é.
Puxa que susto! Ela nunca tinha falado alto assim. Não perguntou mais nada, o
coração ficou batendo, batendo, mas ela continuava sempre quieta, tão quieta que ele
acabou não agüentando e perguntou e novo:
— Mas e agora? Como é que você vai dar aula sem a maleta?
— Não sei.
— Mas ... escuta....você já procurou bem? - Ela fez que sim com a cabeça. - Botou
anúncio no jornal? Diz que quando a gente bota anúncio quem acha dá pra gente.- Ela
ficou quieta. - Botou?
— Botei.
— Ninguém achou?
— Não.
— Então como é que vai ser?
— Não sei.
— Dá jeito de você comprar os pacotes de novo?
— Não.
— Por quê? - Ela não disse nada. - Responde. Por quê?
— Eles vêm junto com a maleta. Não vendem separado.
— Mas então compra outra maleta! Pronto ! - Ela ficou quieta de novo. E como o
tempo ia passando e ela continuava sempre quieta e, a cara não secava nunca e não
chovia lá dentro e a cara cada vez mais molhada, ele acabou pedindo:
— Compra, sim?
— Não dá Alexandre. Eles não estão mais fabricando essas maletas hoje em dia.
E aí ele não perguntou mais nada. Ela também não falou mais. Até que a campainha
tocou e a aula acabou.