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terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A Professora e a Maleta

A professora e a Maleta 


(Capítulo do livro A Casa da Madrinha de Lygia Bojunga Nunes, escrito em 1978) 


A professora era gorducha: a maleta também. A professora era jovem: a maleta era velha, meio estragada, e de um lado tinha o desenho de um garoto e uma garota de mão dada, vestindo igual, cabelo igual, risada igual. A professora gostava de ver a classe contente. Mal entrava na sala e já ia contando uma coisa engraçada. Depois abria a maleta e escolhia o pacote do dia. Tinha pacote pequenininho, médio e grande, tinha pacote embrulhado no papel de seda, metido em saquinho de plástico, tinha pacote de tudo quanto é cor; não era a toa que a maleta ficava gorda daquele jeito. Só pela cor do pacote, as crianças já sabiam o que ia acontecer. Pacote azul era dia de inventar brincadeira de juntar menino e menina; não ficava mais valendo aquela história mofada de menino só brinca disso, menina só brinca daquilo, meninos do lado de cá, meninas do lado de lá. Pacote cor-de-rosa era dia de aprender a cozinhar. A professora remexia no pacote, entrava e saía da classe e de repente, pronto! Montava um fogão com bujãozinho de gás e tudo. Era um tal de experimentar receita que só vendo. (Um dia a diretora entrou na classe justo na hora em que Alexandre estava ensinando um garoto a fazer uns bolinhos de trigo. Uma fumaceira medonha na sala. Tudo quanto era criança em volta do fogão palpitando : falta mais sal! Bota pimenta !bota um pouquinho de salsa. A diretora sabia que estava na hora da aula de matemática. Que matemática era aquela que a professora estava ensinando? Não gostou da invenção, mas saiu sem dizer nada). Pacote vermelho era dia de viajar: saía retrato do mundo inteiro lá do fundo do pacote, espalhavam tudo aquilo pela classe, enfileiravam as carteiras parta fingir de avião e de trem, quando chegavam nos retratos um ia contando pro outro tudo que sabia do lugar. Tinha um pacote cor-de-burro-quando-foge que a Professora nunca chegou a abrir. Todo dia ela botava o pacote em cima da mesa. Mas na hora de abrir ficava pensando se abria ou não e, acabava guardando o pacote de novo. Pacote verde era dia de aprender a pregar botão, botar fecho, fazer bainha na calça e na saia. Se o verde era bem forte era dia de aprender a cortar unha e cabelo. Verde bem clarinho era dia de consertar sapato. E tinha um verde que não era forte nem claro, era um verde amarelado que as crianças adoravam: era dia da professora abrir pacote de história. Cada história ótima. E tinha um pacote branco que só servia pra Professora esconder e pra turma brincar de achar. Quem achava ia pro quadro negro dar aula. No princípio ninguém procurava direito: coisa mais chata dar aula! E aula do quê? — Conta tua vida, ué, mostra o que você sabe fazer. Com o tempo, a turma deu para procurar direito o pacote: achavam engraçada aquela tal aula. No dia em que Alexandre achou o pacote, resolveu contar para a turma como é que ele vendia amendoim na praia.. No melhor da aula, um grupo de pais de alunos, que estavam visitando a escola, entrou na sala. Quando a aula acabou um deles perguntou à professora? — A senhora está querendo ensinar o meu filho a vender amendoim? A Professora explicou que Alexandre só estava contando para os colegas como era o trabalho dele, para todos ficarem sabendo como é que ele vivia. No outro dia saiu a fofoca: contaram para Alexandre que tinha um pessoal que não estava gostando da maleta da Professora. — Que pessoal? Um disse que era a Diretora, outro disse que era uma outra professora, outro disse que era o pai de um aluno, outro falou que era o faxineiro e foi um tal de disse que o outro falou, que ninguém ficou sabendo direito. Aí, uns dias depois, choveu muito. Chuva grossa. Encheu rua, o tráfego da cidade parou, casa desmoronou, coisa à beça aconteceu. Quase ninguém foi à escola. Mas Alexandre foi. Entrou na classe e viu tudo vazio, chovia demais para voltar para casa; resolveu sentar e esperar. Lá pelas tantas, a Professora chegou. Mas chegou sem a maleta. E com um jeito diferente, uma cara meio inchada, não contou coisa gozada, não riu nem nada. Sentou e ficou olhando pro chão. Alexandre achou que ela nem tinha visto ele: — Oi. Ela também disse oi, e continuou quieta. Depois de um tempo, Alexandre cansou de tanto ninguém dizer nada e falou: — A chuva molhou sua cara. A Professora nem se mexeu. Ele perguntou: — Foi a chuva? Ela fez que sim com a cabeça. Alexandre resolveu esperar mais um pouco. Mas pelo jeito, a Professora tinha esquecido de dar aula. Será que era porque ela não tinha trazido a maleta? Arriscou: — Cadê a maleta? A Professora olhou para ele sem saber muito bem o que é que dizia. Ele insistiu. — Hem? Cadê? — Perdi. Ele se apavorou: — Com tudo que tinha lá dentro?! — É. — Os pacotes todos? — É, é, é. Puxa que susto! Ela nunca tinha falado alto assim. Não perguntou mais nada, o coração ficou batendo, batendo, mas ela continuava sempre quieta, tão quieta que ele acabou não agüentando e perguntou e novo: — Mas e agora? Como é que você vai dar aula sem a maleta? — Não sei. — Mas ... escuta....você já procurou bem? - Ela fez que sim com a cabeça. - Botou anúncio no jornal? Diz que quando a gente bota anúncio quem acha dá pra gente.- Ela ficou quieta. - Botou? — Botei. — Ninguém achou? — Não. — Então como é que vai ser? — Não sei. — Dá jeito de você comprar os pacotes de novo? — Não. — Por quê? - Ela não disse nada. - Responde. Por quê? — Eles vêm junto com a maleta. Não vendem separado. — Mas então compra outra maleta! Pronto ! - Ela ficou quieta de novo. E como o tempo ia passando e ela continuava sempre quieta e, a cara não secava nunca e não chovia lá dentro e a cara cada vez mais molhada, ele acabou pedindo: — Compra, sim? — Não dá Alexandre. Eles não estão mais fabricando essas maletas hoje em dia. E aí ele não perguntou mais nada. Ela também não falou mais. Até que a campainha tocou e a aula acabou.